Como fruto do Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí, realizado em dezembro do último ano no município de Picos, representantes de 46 comunidades quilombolas construíram uma carta apresentando a síntese das suas principais discussões. O documento denuncia os diversos desafios que as comunidades têm enfrentado para a efetivação dos seus direitos, expressa as estratégias de superação e perspectivas construídas coletivamente, bem como manifesta suas reivindicações.

Leia a carta completa:

Entre os dias 11 e 12 de dezembro de 2018, nós, representantes de 46 (quarenta e seis) Comunidades Quilombolas do Piauí, estivemos reunidas/os no Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí, no município de Picos-PI. A atividade, realizada pelo Projeto Viva o Seminário (PVSA), o Programa de Geração de Emprego e Renda (PROGERE II) e a Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ), tinha por objetivo fortalecer as ações de políticas públicas para comunidades quilombolas e apoiar a luta do movimento no Piauí, considerando o trabalho desenvolvido pelo PVSA e o PROGERE II, por meio da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Rural do Piauí (SDR-PI).

O encontro se realizou em um contexto de grande preocupação das comunidades quilombolas com o resultado das eleições presidenciais que elegeu um candidato que explicitou extrema discriminação e preconceito com as/os quilombolas e que indica um processo de perseguição e criminalização dos movimentos sociais de luta pela reforma agrária e pelo reconhecimento dos territórios dos povos e comunidades tradicionais. A questão agrária segue como a maior luta das/os quilombolas que têm seus territórios como espaços fundamentais de vida, produção, luta e resistência, ao mesmo tempo em que ainda é o maior desafio e motivo de conflitos. O movimento quilombola denunciou que os conflitos agrários estão se intensificando com os grandes empreendimentos no Estado que dividem os territórios e comunidades, expulsam famílias de suas áreas, contaminam as terras e as águas. Outra denúncia do movimento quilombola é a lentidão e burocratização na regularização fundiária dos territórios quilombolas.

Para aprofundar reflexões sobre temas relevantes para a vida das comunidades, tivemos durante o encontro cinco Grupos de Trabalho que discutiram sobre os problemas que as comunidades têm enfrentado e quais são as perspectivas, as estratégias que têm sido construídas:

1) Meio ambiente e Agroecologia

O meio ambiente é muito importante para nossas vidas. Se nós não cuidamos do nosso próprio ar, como vamos sobreviver? Não podemos esquecer os conhecimentos que nos foram repassados pelas nossas mães e pais sobre as formas de nos relacionar com a natureza. Consideramos que é importante fortalecer a agroecologia e incentivar o trabalho nos quintais com diversidade de plantas que servem para ornamentar, alimentar e medicar. Através dos quintais, podemos ter uma melhor qualidade de vida, evitando vários tipos de doenças. O trabalho das mulheres nos quintais deve ser valorizado, pois elas têm uma grande contribuição para a renda das famílias. É fundamental a força de vontade para ajudar às/aos outras/os, sendo o nosso dever cuidar da natureza

2) Identidade Cultural

As identidades são os nossos costumes, nosso jeito de falar, de comer, de rezar, de nos relacionar, de nos expressar. Identidade é cultura, é tudo que está ligado à história humana. Um povo sem cultura é um povo inexistente! Quando se quer destruir um povo, o caminho tem sido destruir sua identidade e isso foi feito com o nosso povo negro, arrancando nossa alma, tratando-nos como animais. A nossa maior escravidão foi a catequese. É hora do povo negro recuperar o que é nosso, hora de pegar a caneta e (re)escrever nossa história. Precisamos recuperar nossa identidade indígena e quilombola trazendo as indumentárias e os elementos que estão ligadas às duas raças, como esteira nesse caminho. O Brasil é um filho da África e devemos defender nossa história e nossa identidade cultural. Gritamos juntas/os: “Não ao genocídio do povo negro!”.

O papel do Estado e das políticas públicas deve ser o de valorizar, reconhecer e a apoiar a cultura negra e a luta contra toda forma de racismo, sobretudo, o institucional.

3) Juventude e Comunicação

Todas as comunidades quilombolas possuem muitas/os jovens, porém, a juventude não tem tido apoio para fortalecer sua participação nas questões relacionadas à comunidade. Sabemos que a juventude é responsável por perpetuar nossos saberes tradicionais e culturais nas comunidades, por isso, é preciso realizar um trabalho diferenciado com a juventude. Em uma era digital, de tecnologias e redes sociais, as/os jovens seguem excluídas do mundo do trabalho; temos poucos pontos de culturas e projetos que fortaleçam nossas ações, trabalhos e atividades culturais. Queremos que o dia da consciência negra seja apoiado e fortalecido. Para dar mais apoio à juventude reivindicamos que:

  • As ações de comunicação realizada por jovens que fazem parte da comunidade sejam valorizadas e apoiadas;
  • Sejam realizadas trocas de conhecimentos, intercâmbios e construção de parcerias entre as comunidades;
  • Haja incentivo às festas culturais dentro das comunidades;
  • Aumentem as ações que possibilitem o acesso das/os jovens ao ensino superior, a exemplo de bolsas permanentes para remanescentes de quilombo, resultado da luta do movimento quilombola;
  • Incentivo à participação social e política da juventude nos espaços institucionais
 4) Mulheres Quilombolas

“Nós somos iguais, as mulheres têm os mesmos direitos que os homens”. Com este sentimento de igualdade, as mulheres quilombolas têm pautado sua organização nos espaços de poder e decisão nas Associações Quilombolas. Nesse sentido, é importante que as mulheres continuem se fortalecendo e construindo espaços de reflexão, de diálogo, de troca de saberes para sua auto-organização social e política nas comunidades. É necessário ainda trazer para a roda nossos companheiros (maridos, filhos) para apoiar nossa luta. Para fortalecer as mulheres quilombolas, é importante:

  • Fortalecer e a apoiar as mobilizações e reuniões das mulheres, em encontros periódicos, em suas ações e diálogos cotidianos;
  • Criar e fortalecer momentos e espaços de poder e decisão para as mulheres;
  • Realizar intercâmbios com grupos liderados por mulheres, com o objetivo de trocar de experiências exitosas entre as comunidades;
  • Realizar atividades onde os homens também possam dialogar sobre temas como violência contra as mulheres e desigualdade de gênero;
  • Apoio e parceria da Defensoria Pública Federal nas ações/atividades nas comunidades quilombolas.
  • Que o movimento quilombola continue realizando o Encontro Estadual das Mulheres Quilombolas do Piauí.

5) ATER Quilombola

As/os participantes destacaram a necessidade de que as organizações que realizam assistência técnica tenham um olhar diferenciado para as comunidades quilombolas, reconhecendo nossas especificidades, entendendo e valorizando nossa identidade, práticas culturais, religiosas, artísticas. Para isso é necessário:

  • A retomada de diálogo do Governo do Estado e com a FAO para o retorno do Projeto ATER Quilombola, através do EMATER-PI;
  • Pautar com o Governo do Estado maior apoio ao EMATER-PI e outras executoras de ATER em relação ao aumento do custeio, investimento, aumento de técnicas/os extensionistas, assim como, valorização salarial da categoria;
  • Ao retomar o diálogo, bem como o Projeto ATER Quilombola, resgatar o papel das/os Educadoras/es Populares, assim como, o seu reconhecimento com o apoio financeiro para subsidiar esse trabalho tão importante;
  • Que a EMATER-PI e executoras de ATER coloquem em seus planejamentos estratégicos ações de ATER para comunidades quilombolas em determinados territórios com condições estruturais e financeiras;
  • O movimento quilombola deve fazer o levantamento de experiências produtivas exitosas (saberes tradicionais) para serem utilizadas em processos internos de ATER, através de trocas de experiências entre os jovens e griôs (mais velhos), a ser apresentado ao Governo com vistas ao fomento de futuras políticas públicas;
  • É importante o envolvimento de jovens quilombolas com formação técnica, bem como o fomento às experiências locais de comercialização, produção agroecológica, comunicação, abrangendo discussões como as de “novas” ruralidades;
  • Deve haver um processo de formação interno das equipes junto com o movimento quilombola antes de irem para as comunidades, para que haja um nivelamento das informações acerca dos projetos/programas, com a utilização de metodologias participativas e um olhar diferenciado voltado para social.

Sobre as políticas públicas para as comunidades quilombolas, vimos um mapeamento das ações da SDR-PI, mostrando o que tem sido realizado, assim como os desafios enfrentados para de fato priorizar as comunidades quilombolas. Para isso, é preciso fortalecer a parceria continuada da SDR-PI com o movimento quilombola na busca por melhorar a comunicação, o diálogo, especialmente com as equipes das regionais, e resolver pendências que ajudem a agilizar e ampliar o apoio aos nossos projetos produtivos. Nesse sentido as/os representantes do governo presentes se comprometeram a seguir em diálogo e apoiando as ações do movimento e das comunidades quilombolas no Estado. Destacou-se ainda a necessidade de que seja realizado cotidianamente o registro pluviométrico como subsídio para as ações do Governo.

A partir dos debates realizados, o movimento quilombola reafirma sua força e garra para seguir na luta pelos direitos e pela vida do povo remanescente de quilombos no estado do Piauí, cada dia mais organizadas/os e mobilizadas/os para os enfrentamentos necessários. Demandam ainda que seja pautada junto à Assembléia Legislativa a criação de uma lei (decreto) para instituir o dia 20 de novembro – Dia Estadual da Consciência Negra – como feriado estadual. Fica registrado também que o movimento quilombola se manifestou a favor da criação de uma Secretária Estadual de Direitos Humanos no Piauí.

Picos, 12 de dezembro de 2018.